Autor (a): Raquel Marques Landgraf
Observação: Este texto está sendo republicado. Sua publicação original ocorreu em 18 de abril de 2024.
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“Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos./ A vida inteira que podia ter sido e que não foi./ Tosse, tosse, tosse.”
Escreveu Manuel Bandeiras ao ser infectado por uma pequena bactéria, a Mycobacterium tuberculosis. Conhecida também como bacilo de koch, esta bactéria é a causadora da tuberculose, uma doença considerada pré-histórica, uma vez que há evidências de que múmias, datadas de 3000 A.C, a tiveram em vida. Ela também é considerada uma doença romântica, tendo sido idealizada em diversas obras literárias e artísticas do século XVIII.
Na atualidade, ela é considerada a doença infecciosa que mais mata no mundo, causando o óbito de mais de 1 milhão de pessoas anualmente. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a tuberculose aflige cerca de 8,8 milhões de pessoas no mundo, sendo considerada portanto, uma doença endêmica e, por mais que ela se distribua igualmente por todas as camadas sociais, há fatores que levam a um quadro mais grave e característico na população mais empobrecida, entre eles a desnutrição, as doenças de base e o acesso aos medicamentos.
Fome: uma das raízes do problema
Segundo um relatório liberado pela Organização das Nações Unidas (ONU), neste ano, mais de 735 milhões de pessoas passam fome no mundo e 2,3 bilhões estão em insegurança alimentar, uma situação em que a pessoa não possui alimento em quantidade e qualidade suficientes para a sua sobrevivência de forma regular e permanente. Embora este termo seja empregado desde a primeira guerra mundial, nos últimos anos, em decorrência da pandemia do Covid-19 e os diversos conflitos que vem se estendendo pelo mundo, ele passou a ser utilizado com mais frequência. Esta realidade de carência alimentar permite que cerca de 33% da população brasileira e 30% da mundial tenham maior propensão a desenvolver agravos à saúde e a piora do quadro de doenças que normalmente não seriam consideradas altamente mortais.
O levantamento, “Alimento para justiça”, realizado pela Universidade Livre de Berlim em parceria com mais 2 instituições brasileiras, demonstrou que a falta de alimentos adequados causa enfraquecimento do corpo, prejuízos no desenvolvimento físico e mental e aumenta a probabilidade de doenças. O motivo é que, para que o ser humano não desenvolva as mais diversas doenças que estão disponíveis no ar que respiramos, o corpo possui um “exército de defesa”, o sistema imunológico e, para que ele funcione de maneira adequada, são necessárias certas substâncias em quantidades mínimas, como a glicose, as vitaminas, as proteínas e outros milhares de aminoácidos. A fome e a alimentação incompleta acabam por causar uma queda na barreira imunológica, o que permite que doenças cotidianas e oportunistas aconteçam com mais frequência, assim como o agravamento do quadro das infecções em andamento.
A pandemia vivida nos últimos anos impactou gravemente a população, causando o aumento da fome e da população em situação de rua. Entre 2019 e 2022 houve um aumento de 38% desse segmento da população, que não possui acesso a uma alimentação de qualidade, agasalhos propícios ao clima, higiene adequada e tampouco estão protegidos das demais doenças que podem adquirir durante o tratamento. Outro fator preocupante é que, por não possuírem residência fixa, as pessoas em situação de rua acabam encontrando dificuldade para serem atendidos nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), Estas pessoas geralmente acessam o atendimento de equipes da rede de proteção social e do Consultório de Rua, um serviço que não está disponível em todas as cidades e que, quando existe, acaba não conseguindo dar cobertura a todos. Já é de conhecimento amplo que a distribuição médica no país não é compatível com o suporte que deveria haver para a população, e que para muitos brasileiros a possibilidade de se consultar com um profissional é ínfima.
Doenças crônicas não transmissíveis como fator de risco
“Mandou chamar o médico:/ Diga trinta e três./ trinta e três… Trinta e três… Trinta e três…/ Respire.”
Globalmente, estima-se que, por ano, as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) representam 70% das mortes totais. Ao abordar o território nacional, nota-se que a realidade não é destoante, uma vez que 55% dos óbitos em 2019 ocorreram em decorrência de uma DCNT. Estas doenças que incluem enfermidades cardíacas, hipertensão arterial sistêmica, diabetes e até mesmo a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) são fatores importantes para o agravamento de doenças infecciosas, uma vez que podem caracterizar um sistema imunológico deficitário.
No caso das doenças cardíacas, tão comuns no Brasil e no mundo, estas enfermidades causam uma exacerbação das respostas inflamatórias do corpo – o que estimula a resposta imunológica, que, ao se manter por muito tempo, acaba gerando dano aos tecidos do coração. Ao adquirir uma infecção, portanto, o sistema imune, já empenhado na resposta inflamatória, pode ter uma ação mais forte e causar danos extensos ao ser humano.
Ao se tratar da SIDA e da diabetes, é mais evidente o déficit do sistema imunológico, por se tratarem de doenças que afetam diretamente o sistema de defesa humano. No caso da tuberculose, os pacientes que apresentam doenças de base como a SIDA podem desenvolver um tipo específico, a tuberculose ganglionar, que é mais complexa de tratamento e representa maior taxa de óbitos em comparação a população sem doenças de base infectadas.
Do diagnóstico ao tratamento: os desafios no combate à tuberculose
Depois de semanas, senão meses, lutando com tosse, febre, sudorese noturna, consultas médicas e exames, o cidadão finalmente recebe o diagnóstico de tuberculose. Embora com medo, ele ouve as instruções para o tratamento, que incluem 2 antibióticos por dia, por no mínimo 6 meses, se não houver complicações. Caso as tenha, o tratamento pode levar até 2 anos. Um tratamento difícil e que deve ser acompanhado de perto, com muitas recomendações, como uma alimentação equilibrada, estagnação das doenças crônicas, moradia e higiene adequados.
Porém, em uma sociedade com os problemas supracitados de alimentação e acesso médico, e em que, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 211 mil pessoas estão em situação de rua e 72 mil pessoas não possuem acesso ao Sistema único de Saúde (SUS), um tratamento que dura de 6 meses a 2 anos consegue ser realizado com êxito?
Entre os medicamentos para o tratamento da doença, os antibióticos mais utilizados são a rifampicina e a isoniazida, medicações que podem chegar a 5 comprimidos diários e cujo tratamento custa em média 3.200 reais para os familiares por caso tratado. Esses gastos podem chegar a comprometer 48% da renda familiar média, caso não haja complicações do quadro. Embora o SUS arque com a medicação, e quase a totalidade dos casos registrados recebe a medicação sugerida, o problema envolvendo as empresas produtoras dos medicamentos genéricos, mais utilizados pelo sistema de saúde, pode afetar o fornecimento do medicamento.
Atualmente a Índia é a maior produtora de medicamentos genéricos do mundo, mas em virtude da luta pelas patentes dos fármacos, ela acabou sendo diretamente afetada e sua produção em larga escala pode ser prejudicada. A diminuição da produção destas empresas geraram um impacto global e a falta de milhares de medicamentos nas prateleiras das farmácias, tanto hospitalares quanto populares, já são sentidas, atrasando o tratamento das enfermidades e agravando o quadro dos pacientes.
Sendo a tuberculose a doença com maior abandono de tratamento registrado, diversas medidas que visam reduzir a desistência foram tomadas. O Ministério da Saúde (MS) ampliou a propaganda sobre a doença e os postos de saúde que realizam o rastreio e tratamento. A OMS também ampliou as pesquisas e reportagens sobre o assunto, na tentativa de conscientizar a população sobre a importância do tratamento e para o fato de que, caso não seja feito da maneira correta, pode resultar na morte do enfermo e na propagação para os seus familiares.
O fato da doença, que possui o tratamento conhecido há mais de 50 anos, ainda ser a principal causa de morte na população, está muito mais intimamente ligado à condição de vida dos enfermos do que a carência de propagandas e estudos. Convencer uma pessoa a se tratar por 6 meses é difícil, mas o real desafio é convencê-la que grande parte de sua renda será destinada a isso e que ela deve se alimentar corretamente, não poderá trabalhar por um tempo e que pode vir a colocar outras pessoas em risco.
“O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado./ Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?/ Não./ A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”.
Manuel Bandeira teve “uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi”. Viveu em uma época em que não tinha tratamento eficaz para uma doença que adquiriu aos 18 anos, viveu com medo e à espera de sua morte, com dor, tosses incoercíveis e um desconforto que tirava suas noites de sono. Hoje tem-se o tratamento, mas milhões de pessoas vivem com as incertezas de Manuel, muitas por falta de conhecimento, outras por falta de condição, outras inúmeras por desistência. Inquestionavelmente, a tuberculose é um assunto urgente para a saúde global, mas não há erradicação de uma doença sem a erradicação de suas causas.
Curadoria do Fórum Social Mundial da Saúde e Seguridade Social
Raquel Marques Landgraf é acadêmica de medicina e curadora do FSMSSS, com participação em ações de saúdes orientadas para a prevenção de câncer de mama, prevenção de câncer de próstata e ações de mapeamento da hipertensão arterial.
Os trabalhos do FSMSSS são revisados por Isadora Borba e Rafaela Venturella De Negri.