1 em cada 11 pessoas passam fome no mundo.
A fome é um dos problemas mais complexos que a humanidade enfrenta atualmente, e ele é multifatorial: econômico, ambiental, geo-político, psicológico e nutricional.
Para abrir esse artigo vou usar as primeiras linhas para resgatar alguns fatos de evolução da nossa espécie: vivíamos em sociedade caçadora-coletora, lidando com os ciclos da natureza e a disponibilidade sazonal dos alimentos; depois da revolução agrícola do período neolítico foi possível produzir quantidades que permitissem o estoque de alimentos, em que nossos ancestrais passaram a dominar algumas culturas e criação de animais; e, por fim, fazendo um grande salto no tempo, estamos vivendo a revolução industrial-alimentar: produções em enormes escalas, transações globais de alimentos e produtos alimentícios de todos os tipos a uma “compra” de distância.
Para a narrativa da sociedade pós-moderna ocidental, o progresso foi capaz de gerar variedade e disponibilidade nutricional de forma democrática e acessível de forma nunca antes vista. Mas a realidade é que a fome (insegurança alimentar grave ou crônica) atinge 1 a cada 11 pessoas no mundo – sendo ainda mais cruel na África, onde atinge 1 a cada 5 pessoas, de acordo com o Relatório da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations). A FAO é a principal instituição a tratar desse tema, com agenda global e a participação de mais de 197 membros. Por ser uma agência da ONU, a FAO está comprometida com a Meta 2, das 17 metas da ODS (Objetivos Desenvolvimento Sustentável), que tem por objetivo a ZERAR A FOME no mundo até 2030.
A fome não é mais um fenômeno natural
Se em algum lugar do passado nossos ancestrais passaram fome por não conseguir caçar ou coletar, ou ainda, fazer uma estocagem de alimentos ou calorias para enfrentar um longo período sem alimentação, hoje a comida produzida não chega a quem precisa porque, na maioria dos casos, o sistema não tem interesse em entregar o alimento que é produzido à toda população. A concentração de renda e da produção; o racismo, incluindo o racismo ambiental são instrumentos de isolamento de uma parte da população que ao sistema não interessa que faça parte do círculo consumidor, e portanto, não importa as condições em que vivem. A xenofobia e os constantes conflitos armados em andamento no mundo, são também grandes marcadores dessa situação.
Pela lógica do mercado capitalista, há sempre mais produtos prontos para serem consumidos do que o consumo real. De acordo com o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, 2019) entre 25 e 30% dos alimentos produzidos para consumo humano — cerca de 1,3 bilhão de toneladas — são perdidos ou desperdiçados a cada ano. De tudo o que é jogado fora, apenas 25% já seria suficiente para abastecer a população com fome.
O mais alarmante é que o preço dos produtos já considera o custo do que não é consumido e é desperdiçado. Este custo embutido torna a desigualdade ainda mais grave: em países de baixa renda 71,5% da população não pode pagar por uma dieta saudável.
As causas deste fenômeno variam muito dependendo do grau de desenvolvimento dos países. Nos países em desenvolvimento, 40% das perdas são registradas após a colheita. Nos países industrializados, 40% das perdas ocorrem na fase de varejo ou na casa dos consumidores: estima-se que 931 milhões de toneladas de alimentos, ou 17% do total de alimentos disponíveis aos consumidores em 2019, foram para o lixo.
Segundo a FAO, europeus e norte-americanos jogam, por pessoa, de 95 a 115 quilos de comida no lixo todo ano. Países ricos têm maior tendência a jogar comida fora, mesmo estando em perfeitas condições de uso, e convivem com poucas perdas. Já nos mais empobrecidos ocorre o inverso, muita comida vai pro lixo por problemas ao longo do sistema de produção e transporte, mas as pessoas aproveitam quase todo o alimento que chega até elas.
Outro fator importante é que pessoas que moram em cidades não passam fome pelos mesmos motivos que as pessoas que moram no campo. O primeiro grupo pode sofrer com falta de acesso a recursos financeiros para acessar supermercados, ou ainda, os custos de moradia são maiores e mais complexos, sobrando menos para custear a alimentação. A outra parcela, que vive no campo, normalmente não tem acesso a grãos para plantar para sua família, ou os animais que criam não ganham peso, ou ainda, porque sofrem mais severamente com os impactos ambientais – e isso faz girar ainda menos a economia de pequenos produtores ou produtores de subsistência.
Já para os grandes da agropecuária, a produção atende à expectativa da rentabilidade: um exemplo é que produtores brasileiros estão produzindo mais carne do que arroz e feijão. Sem uma política social global assertiva, não teremos incentivos à produção de alimentos que atinjam as classes de renda mais baixa.
Existe uma perversidade nessa estrutura: visando apenas o lucro, o setor privado produz e vende pelo preço que apenas uma parte da população pode pagar. Não há legítima preocupação com questões sociais por parte das empresas – e, muitas vezes, nem por parte do setor público. O problema é complexo, estrutural e também poderíamos dizer ético; e as políticas estatais e internacionais são poucas e genéricas.
¹ Relatório da FAO de 2024 https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/en/c/1707863/